Por: Andre Baiseredo
A intolerância religiosa não é um fenômeno recente no Brasil. Em outubro de 1999, Gildásia dos Santos, a mãe Gilda de Ogum, teve uma foto sua, com trajes de candomblé e uma oferenda aos pés, publicada em uma reportagem do jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, que acusava religiões de matriz africana de praticar charlatanismo. “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, dizia o título da matéria. Como era de se esperar, rapidamente, a vida de mãe Gilda de Ogum foi assolada pela intolerância. Seu terreiro foi invadido e suas imagens depredadas. Embora já estivesse com seus 65 anos, nem mesmo mãe Gilda foi poupada, tendo a fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum sido agredida física e verbalmente. Resultado, um infarto que a levou ao óbito em 21 de janeiro de 2000.
Sua filha, Jaciara Ribeiro dos Santos, processou a Universal, que foi obrigada a publicar uma retratação no seu jornal e a pagar, nos exatos termos da decisão do STJ, uma indenização de R$ 145.250,00 por danos morais e uso indevido de imagem à família de mãe Gilda. Em sua memória, 21 de janeiro virou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
Instituído pela Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, a data em reverência a Mãe Gilda é um momento oportuno para reflexão, sobretudo atualmente, em que é crescente o número de denúncias de prática de atos de intolerância religiosa no País.
Destruição de templos religiosos, obstáculos para a realização de cultos, comentários discriminatórios e, muitas vezes, agressões físicas e até assassinatos. São muitas as notícias sobre intolerância religiosa em todo o país e os casos se refletem em números.
De janeiro a junho de 2024, o Disque 100 — canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos — registrou um aumento de mais de 80% nas denúncias contra liberdade religiosa em relação ao mesmo período do ano anterior.
O perfil das vítimas, muitas vezes, também se repete: a maioria é composta por mulheres e negros. Entre as denúncias registradas de janeiro a junho de 2024, mais da metade foi cometida contra pessoas pretas ou pardas, sendo 60,5% das vítimas mulheres; 32,4% homens; 0,24% intersexo; e, 6,84% não informaram ou não declararam.
De acordo com o governo, no ranking de cidades onde mais foram feitas denúncias deste tipo estão cinco capitais, em ordem: Rio de Janeiro (RJ): 147 denúncias; São Paulo (SP): 115 denúncias; Brasília (DF): 60 denúncias; Salvador (BA): 44 denúncias; e, Manaus (AM): 43 denúncias.
O mais assombroso nos casos acima listados é que os crimes, na grande maioria das vezes, aconteceram na própria casa da vítima, mas a internet já vem aparecendo com força total, tendo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) apontado que, em seis anos, as denúncias por crimes de intolerância religiosa em páginas da internet triplicaram – os números saltaram de 1,4 mil registros em 2017 para 4,2 mil em 2022.
Infelizmente, no Brasil, casos como o de mãe Gilda não apenas são uma realidade, mas, também, uma rotina, não poupando das estatísticas nem mesmo as crianças. O Município de Maricá também engrossa as estatísticas com casos de depredação de terreiros, ameaças e até mesmo vídeos de intolerância religiosa amplamente divulgados em redes sociais, ações investigadas pela Polícia Civil.
A Constituição Brasileira, em seu artigo 5°, VI, preconiza que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, entretanto, a desinformação, o preconceito, a discriminação e a intolerância continuam sendo os principais motivos do desrespeito as religiões.
A intolerância religiosa é um crime tipificado na Lei nº 7.716/1989, que prevê pena de reclusão de um a três anos e multa para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião, sendo inafiançável e imprescritível. Ou seja, o autor do fato não poderá pagar fiança para responder pelo crime em liberdade e o fato delituoso poderá ser denunciado a autoridade policial a qualquer tempo!
Em caso de intolerância religiosa, isto é, da invasão de terreiros, da interrupção de cultos e do vandalismo de imagens, a vítima deve procurar uma delegacia e registrar um boletim de ocorrência. É importante reunir provas, fotos ou vídeos e testemunhas para viabilizar a punição do agressor, tanto na esfera criminal quanto na cível. Ou seja, a orientação jurídica é de que NO CASO DE AGRESSÃO FÍSICA, exija o exame de corpo de delito. SE A OFENSA OCORRER EM LOCAIS DE CULTO OU EM SUA CASA, preserve o local como ficou para legitimar a investigação. A educação continua sendo o melhor caminho, mas enquanto ela não se consolida temos a punição e as indenizações por danos morais, dentre outras medidas, como plenamente válidas para dar alguma paz de espírito às vítimas.
A intolerância tem a ver com desrespeito. É quando um determinado grupo toma sua religião ou seu posicionamento como superior à dos demais, desrespeitando qualquer escolha alheia a sua própria. Fanatismo religioso nunca conduziu a locais saudáveis de convívio social e se a sociedade rapidamente não der um basta a isto podemos evoluir muito facilmente para a barbárie. A história já nos provou isso em diversas situações.
A intolerância religiosa deixa cicatrizes, não só físicas, mas, também, psicológicas. E não podemos esquecer que as estatísticas dão apenas um panorama do problema, considerando o cenário de subnotificação. O fato, é que quase 100% das pessoas que professam religião de matriz africana já foram vítimas de algum tipo de intolerância religiosa. Toda intolerância religiosa é uma violência, toda violência gera trauma, e todo trauma afeta, com maior ou menor intensidade, a saúde psíquica de um indivíduo.
O Brasil é um país de maioria cristã que sempre foi intolerante com as religiões não cristãs. Como tolerar a intolerância religiosa? Impossível. Abolir práticas de intolerância deve ser um compromisso de todos, seja do Estado, em suas instituições, por conta da laicidade prevista constitucionalmente, seja de cada indivíduo, pois a busca de uma sociedade mais justa e respeitosa deve permear cada passo de nosso caminho evolutivo.
A educação é o melhor caminho. É preciso educar para a paz. Contudo, enquanto nosso eldorado não se apresenta, utilizemos todo o arsenal de medidas disposto no ordenamento jurídico para a defesa de qualquer prática religiosa ou para sanar qualquer dano cometido!

Advogado, Professor e Escritor. Sócio do Escritório Baiseredo, Corrêa & Figueiredo Advogados Associados. Diretor Jurídico do CEMOI.
Diretor Jurídico do CBRHOI.
Presidente da Comissão de Direitos Fundamentais da OAB Maricá, Vice-Presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB Barra da Tijuca e Membro do GT de Bioética do CREMERJ. Professor da Associação Brasileira de Ouvidores – Seção Rio de Janeiro, Professor de Especialização e Cursos Técnicos e Congressista.