Coluna Jurídica: Transfusões de sangue contrárias à vontade do paciente

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Foto: Banco de imagem

O sangue. Tecido conjuntivo líquido que circula pelo sistema vascular em animais com sistemas circulatórios fechados; formado por uma porção celular de natureza diversificada – pelos “elementos figurados” do sangue – que circula em suspensão em meio fluido, o plasma. O sangue é formado por diversos tipos de células, que constituem a parte “sólida” do sangue, cada tipo com anatomia e funções próprias; essas imersas em uma parte líquida chamada plasma.

Seria muito econômico – e por que não dizer pretencioso – se limitar aqui em transmitir uma definição técnica do que seria o sangue. Tal tecido de vital importância para o ser humano ocupa posição de relevado destaque não somente no cenário científico, mas também no filosófico, literário e religioso. Por esta exata razão, seria leviana a mera cogitação de que para o Direito o aspecto mais relevante do sangue seria aquele contido nos manuais de medicina, pois certamente não é somente aquele conceito que irá nortear a análise das mais diversas questões que circundam a uso terapêutico do sangue. Aliás, tal conceito, por vezes, não será sequer o aspecto mais relevante.

Assim, ao longo da história – mitológica; bíblica, ou não, – o homem tomou as mais questionáveis decisões, tendo seu comportamento norteado pelo conceito, ou simbolismo, que empregava a tal elemento de vital importância. Inúmeros escritores valeram-se de tal relevância no subconsciente coletivo para garantir o sucesso de suas obras. Até mesmo Willian Shakespeare em sua obra o Mercador de Veneza se vale de apenas uma gota de sangue para garantir toda a reviravolta de uma trama, revelando não somente a importância do sangue, como a conotação jurídica de proteção ao mesmo.

Acrescente, ainda, ao poder simbólico do sangue todo um cenário de alteração de paradigmas da relação existente entre o médico e o paciente. Atualmente, os princípios bioéticos se revelam como verdadeiros “fiéis da balança” da relação médico-paciente, o que em questões ligadas ao sangue vem se revelando um ponto de conflito deveras interessante.

Não se está aqui a apregoar que os profissionais da área da saúde são incapazes de respeitar as convicções religiosas de seus pacientes, muito ao revés, o que ocorre, na maioria dos casos, é uma incompreensão destes profissionais ante a impossibilidade de adoção de condutas técnicas cientificamente válidas e que se encontram a sua disposição, capazes de garantir uma sobrevida ou cura de seu paciente.

O conceito de saúde, na área do Direito, deixou de ser simples “ausência de doença” para se tornar “completo bem estar físico, mental e social”, nos exatos termos do assegurado pelos artigos 1º, III, 196, 225, dentre outros, da Constituição Federal. Note-se que a Lei Maior de 5 de outubro de 1988 encampa os preceitos firmados em 26 de julho de 1946 pela Organização Mundial de Saúde.

É com base em tal premissa que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decretou a Lei nº 6998 de 08 de maio de 2015, que estipula o direito à objeção de consciência como escusa ao princípio constitucional insculpido no artigo 9º, § 1º da Constituição Estadual. Dentre outras coisas, a indigitada norma considera objeção de consciência a possibilidade de recusa por um indivíduo da prática de um ato que colida com suas convicções filosóficas, éticas, morais, e religiosas, por imperativo de sua consciência, desde que esta recusa não configure violação a direitos de outros cidadãos expressos no Artigo 9º da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

Em contrapartida, a mesma norma estabelece que no exercício da objeção de consciência, além dos argumentos éticos, morais ou religiosos, poderá ser exigida, do cidadão, a apresentação de histórico que comprove seu envolvimento com a convicção alegada, a fim de fundamentar sua recusa à prática do ato. Por tal razão, a realização de procedimento terapêutico que inclua transfusão sanguínea em pacientes adeptos da religião intitulada “Testemunhas de Jeová” é uma questão polêmica que há tempos preocupa médicos e instiga juristas.

Os profissionais da saúde se veem acuados diante de tal situação por carregarem consigo o dever de salvaguardar o direito, prima facie, mais essencial de qualquer ser humano: a vida. Este não é apenas um imperativo bioético na conduta dos profissionais da saúde, mas, sobretudo, uma obrigação ética insculpida no Código de Ética Médica, que assevera ser vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente (Art. 32). Por outro lado, o mesmo texto legal estipula que é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte (Art. 31).

Assim, cumpre inquirir, é razoável que o ordenamento jurídico permita a recusa de certo indivíduo à realização de determinado tratamento terapêutico, qual seja: transfusão sanguínea, imprescindível à preservação de sua vida, por convicções religiosas? E se esta pessoa estiver em iminente risco de morte e não puder manifestar sua vontade naquele momento? Pode o médico, nesta situação, deixar de realizar a transfusão sanguínea com base na recusa manifestada pelos responsáveis por aquele paciente?

Hipóteses de incidência do dilema.

Paciente maior capaz de expressar validamente a sua vontade.

Em princípio, a liberdade de crença deve prevalecer, desde que esteja o paciente no pleno gozo de suas faculdades mentais, ou seja, em condições de manifestar validamente suas próprias convicções religiosas, o que somente ocorre com indivíduos maiores e capazes.

Isto é, todas as liberdades constitucionais asseguradas aos indivíduos e à coletividade devem ser amplamente respeitadas sempre que não conflitem com bem jurídico de maior relevância, sendo certo que tal ponderação deve ser apreciada em cada caso concreto.

Ora, é nas situações mais complexas, como o impasse ora analisado, que as liberdades constitucionais fazem brilhar seu viés democrático. É, simplesmente, inadmissível sermos “garantistas” de ocasião. O Estado Democrático de Direito não legitima tal linha de conduta.

Não é difícil respeitar a liberdade de crença de outrem quando tal respeito impõe mera tolerância à diversidade de cultos; nem quando ela se reflete na necessidade de conviver com opiniões religiosas divergentes. É quando a discussão se instaura em torno de questões como a presente, qual seja, a atinente ao direito de não realizar transfusão sanguínea de que dependa da vida do paciente – que a defesa das liberdades individuais se faz mais necessária e deve ser empreendida com mais convicção.

Em um Estado Democrático de Direito, onde as pessoas são livres para tomar suas decisões e gerir suas vidas de acordo com seus próprios valores e princípios, não pode haver imposição à procedimento médico que afronte convicções e abale o sentimento pessoal de dignidade de cada um.

Isto é, acolhendo-se a premissa de que a autodeterminação é um dos fatores mais importantes para a felicidade e a dignidade das pessoas, simplesmente não é razoável ignorar a manifestação de vontade de um paciente, a despeito do que possam pensar os profissionais da área da saúde, desde que desta manifestação não restem violados princípios bioéticos e constitucionais.

Paciente incapaz de expressar validamente a sua vontade.

‏Diante de estado de inconsciência ou de incapacidade de manifestação do paciente, o médico, na posição de garante da vida, possui o dever legal e ético de proceder à transfusão. E, ainda, presentes os elementos da urgência e do perigo imediato, não é outra a atitude esperada, até porque a lei penal assim já determina. Assim, uma vez comprovado efetivo risco de morte para paciente incapaz de expressar validamente a sua vontade, não cometeria delito nenhum o médico que, mesmo contrariando a vontade expressa dos responsáveis legais, tivesse ministrado transfusão de sangue.

Paciente menor de idade.

O poder familiar não é absoluto, uma recusa ao tratamento do filho menor por razões de crença religiosa constituir-se-ia em “exercício abusivo do pátrio poder”, uma vez que o Estado transporta para os pais o dever de garantir a vida de seus filhos, porém, se atuarem em sentido diverso, não se pode permitir que a vontade dos pais se sobreponha ao direito de viver de seus filhos, impondo-se, portanto, a intervenção estatal.

Vislumbrada esta hipótese, cumpre ao médico proceder à transfusão, defendendo a vida de seu paciente e, caso venha o hospital a pedir autorização judicial, é dever do magistrado a concessão da tutela em nome da vida deste menor, fundamentada na premissa que o direito à vida pertence ao ser humano, ao indivíduo, e não aos seus pais.

Problema assaz relevante, todavia, é o atinente aos pacientes que possuem 16 e 17 anos de idade, portanto, menores relativamente incapazes, já que o Código Civil em vigor estabelece em seu artigo 5º que a menoridade cessa aos 18 anos. De modo a aclarar a questão, não podemos nos furtar de consignar que o Código Civil, em seu art. 4º, I, preconiza que são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de exercê-los, os maiores de 16 e menores de 18 anos. Resta saber, portanto, se a transfusão de sangue estaria incluída dentre os atos para os quais os maiores de 16 e menores de 18 anos são incapazes, já que tal norma limita tal incapacidade, apenas, a certos atos, ou a forma de exercê-los.

É possível encontrar no ordenamento jurídico diversas situações em que o relativamente incapaz está autorizado a agir independentemente da presença do seu assistente. No Código Civil é permitido ao relativamente incapaz ser testemunha (inciso I do art. 228), aceitar mandato (art. 666) e fazer testamento (parágrafo único do art. 1.860). As exceções à regra da incapacidade relativa não se limitam ao Código Civil, pois na legislação extravagante é possível ao maior de 16 anos e menor de 18 anos ser eleitor (direito de exercício facultativo – art. 14, § 1°, incisos I e II) e celebrar contrato de trabalho (vide art. 7°, inciso XXXIII, CF/88).

Assim, ao se sustentar que a transfusão de sangue é ato indispensável para a manutenção da saúde do próprio indivíduo, temos que a manifestação volitiva que, de fato, interessa é a deste, pois é ele o maior interessado na melhora de seu quadro clínico. Este é o único procedimento compatível com o princípio da autodeterminação!

Assim, o paciente com idade entre 16 e 18 está legitimado a assinar, sem assistência, o termo de consentimento livre e esclarecido, desde que o profissional da saúde consiga constatar no mesmo discernimento para definir o curso de seu próprio tratamento. É, justamente, a aplicação da teoria do menor maduro. Em apertadíssima síntese, tal teoria considera o menor de idade, sob determinadas circunstâncias, capaz de dar um consentimento livre e esclarecido autorizando o seu tratamento de saúde prescindindo, portanto, de autorização dos seus pais ou responsável legal. Analisa-se, com a teoria do menor maduro, a autonomia, a capacidade de consentir, a vulnerabilidade e aspectos socioeconômicos que podem mitigar a aplicação da mesma. Considera-se, também, a possibilidade da dificuldade de acesso a certos direitos fundamentais pelo menor maduro, como o respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e o direito à vida.

Embora os dilemas tenham sido apresentados de forma sucinta, indiscutível que os mesmos encerram profundo conteúdo bioético e, por tal razão, não podem ser encarados com simplicidade. Ainda hoje, curiosamente, a chegada de um Testemunha de Jeová em um nosocômio causa verdadeiro furor. Isso sem mencionar algumas ligações desesperadas para os advogados especialistas. Por outro lado, a negativa da equipe de saúde em aceitar o contido na procuração ou da vontade de acompanhantes e pais de menores gera profundos dissabores, sendo a transfusão em si, invariavelmente, ato de profunda tensão e conflito.

Não existe cenário tranquilo. Não existe dilema sem solução. Não existe análise de dilemas da área da saúde sem profunda compreensão bioética. Não é possível se afirmar existir compreensão bioética sem a análise da intenção de todos os atores do processo.

Portanto, o caminho que indicamos, com a fundamentação para tomada de decisão sobre cada um dos dilemas mais significativos do tema, somente poderá ser consolidado por aqueles que atuam diretamente no seguimento, afinal, a bioética, enquanto ciência viva, necessita desta constante reanálise e consolidação. Somente através da sedimentação do entendimento de que o direito do outro começa onde o meu termina é que podemos compreender as escolhas dos outros e respeitá-las.

Foto: divulgação

Andre Baiseredo
Advogado, Professor e Escritor. Sócio do Escritório Baiseredo, Corrêa & Figueiredo Advogados Associados. Diretor Jurídico do CEMOI. Diretor Jurídico do CBRHOI. Presidente da Comissão de Direitos Fundamentais da OAB Maricá, Vice-Presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB Barra da Tijuca e Membro do GT de Bioética do CREMERJ. Professor da Associação Brasileira de Ouvidores – Seção Rio de Janeiro, Professor de Especialização e Cursos Técnicos e Congressista.